Pesquisadora alerta para o conhecimento na defesa dos povos do Cerrado
Diana Aguiar, uma das organizadoras do livro "Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade", lançado em 2020 como parte da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, descreve a elaboração do livro como um processo colaborativo entre pesquisadores acadêmicos e membros das comunidades locais. O livro destaca a diversidade de saberes e práticas dessas comunidades, oferecendo uma visão abrangente de suas culturas e modos de vida.
Letícia Jury
16 de maio de 2024
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Lançado em 2020, o livro 'Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade' é uma inspiração e também uma referência fundamental para aqueles que desejam conhecer a riqueza do Cerrado. O texto destaca a importância dos povos tradicionais, herdeiros de saberes ancestrais, na preservação da região, uma das mais biodiversas do mundo. Discute-se a relação desses povos com o território, destacando a luta pela defesa de seus modos de vida e da biodiversidade.
Na Parte 1 do livro, são apresentadas histórias e modos de vida dessas comunidades, como das raizeiras e quebradeiras de coco-babaçu, geraizeiras, comunidades indígenas, quilombolas e vazanteiras, mostrando a interação entre suas culturas e o ambiente do Cerrado. Na Parte 2, são abordados os desafios enfrentados, como a ameaça do agronegócio e grileiros, além dos impactos da pandemia da Covid-19, ressaltando a importância da conservação do Cerrado para a vida e a produção de alimentos saudáveis.
O livro foi organizado por Diana Aguiar, que concedeu esta entrevista, e por Helena Lopes. Foi uma realização da campanha em defesa do Cerrado, que tem como tema "Cerrado, Berço das Águas: Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida", e teve, entre outras parcerias, o Le Monde Diplomatique Brasil.
Nesta entrevista, Diana Aguiar que é professora visitante do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal da Bahia e colaboradora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, fala sobre a importância do livro para o campo acadêmico, os movimentos sociais e a sociedade em geral.
Letícia Jury - Gostaria que você me respondesse inicialmente se consegue mensurar a importância do livro que foi organizado por você e pela Helena Lopes para o campo de conhecimento acadêmico (cito meu exemplo), assim como para os movimentos e a sociedade em geral?
Diana Aguiar - Agradeço o interesse no livro. Temos muito orgulho dele e sobretudo do processo que conduzimos para chegar nele. Falar desse processo é o que pode dimensionar a importância do livro, porque ele foi quase uma consequência não inicialmente planejada de um trabalho em rede. Bom, o livro foi concebido no marco da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado (https://www.campanhacerrado.
Letícia Jury - Foi neste momento que vocês decidiram fazer redes de diálogos?
Diana Aguiar - Sim. Foi então que decidimos fazer rodas de diálogos virtuais com representantes de segmentos de povos e comunidades tradicionais do Cerrado, buscando conversar sobre como seus modos de vida estão interconectados com as paisagens e a biodiversidade do Cerrado. Os relatos foram tão poéticos e ricos que sentimos que precisavam de um registro além do canal de Youtube da Campanha. Então convidamos pesquisadores da Academia e populares que conhecem bem esses povos e trabalhamos sobre aquele material, preparando artigos que viraram os capítulos do livro. O livro acabou ganhando vida própria porque ele provê uma caracterização da diversidade de saberes e fazeres que lastreiam esses modos de vida.
Leticia Jury - Qual a contribuição da obra?
Diana Aguiar - Ele reforça esse entendimento de que os conhecimentos desses povos associados à biodiversidade são essenciais para a conservação e o uso sustentável dessa riqueza que é o Cerrado. O nome do livro é "Saberes dos Povos do Cerrado e a Biodiversidade", mas ele poderia ser de forma resumida também "Sociobiodiversidade no Cerrado", mas aí a gente falaria mais com quem já entende essa categoria teórico-política ("sociobiodiversidade") e a gente queria nesse momento apresentar essa mesma construção a partir das palavras dos povos que a constituem.
Letícia Jury - Você falou sobre petição o Tribunal Permanente dos Povos (TPP).
Diana Aguiar. Isso. Voltando ao Tribunal. Passado o imperativo de isolamento físico, quando havia a perspectiva de poder voltar aos encontros presenciais, retomamos a construção da acusação do tribunal, que foi lançado oficialmente em setembro de 2021. O processo das lives e da construção do livro esteve no fundamento disso, porque nessa acusação fizemos a formulação jurídico-política de que o Ecocídio do Cerrado, como destruição vasta e contínua ao longo do tempo, estava se constituindo no processo de Genocídio dos seus povos, como ataques sistemáticos à identidade cultural de um grupo social, já que a base material necessária para a reprodução social de seus modos de vida estava sendo destruída. A caracterização dos povos do Cerrado na sua relação de co-constituição material-cultural com o Cerrado, por meio do livro, nos deu elementos mais sólidos para essa formulação. Na Audiência Final, o júri acolheu a acusação e declarou o Estado brasileiro como responsável, bem como diversas empresas e instituições por sua responsabilidade compartilhada pelo Ecocídio do Cerrado e processo de Genocídio dos seus povos.
Letícia Jury - Você falou sobre isso na primeira pergunta, mas gostaria de enfatizar a importância das lives e dos encontros online durante a pandemia.
Diana Aguiar - Tinha a ver com essa vontade de estar juntos e seguir em diálogo, apesar da distância física. As lives funcionaram bem pra isso num primeiro momento, mas depois fomos conduzindo outros processos descentralizados de construção da acusação para o Tribunal.
Letícia Jury - Pode me falar sobre a importância da Carta do I Encontro das Mulheres do Cerrado?
Diana Aguiar - A carta foi uma construção de uma instância da Campanha, a Articulação de Mulheres do Cerrado. Ela trouxe muita inspiração para a primeira live que foi centrada nos segmentos de povos e comunidades tradicionais do Cerrado marcados pelo protagonismo das mulheres, nomeadamente as quebradeiras de coco-babaçu organizadas no MIQCB e as raizeiras do Cerrado organizadas na Articulação Pacari. A Articulação também fez uma leitura própria da formulação de Ecocídio-Genocídio, por meio de uma carta que foi apresentada ao júri do Tribunal na segunda audiência da Sessão Cerrado, sobre Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade, realizada virtualmente em março de 2022. Nessa carta elas trouxeram a centralidade dos corpos das mulheres do Cerrado, enquanto território de expressão da transmutação do Ecocídio do Cerrado em Genocídio dos seus povos, tanto em razão dos impactos na reprodução biológica (e nesse caso o impacto da contaminação por agrotóxicos do leite materno, dos corpos das gestantes e das mulheres no desempenho do trabalho do cuidado teve bastante centralidade), quanto dos impactos na reprodução sociocultural, considerando o protagonismo das mulheres, de seus saberes e trabalho nas práticas culturais e espirituais das comunidades tradicionais. Essa carta foi publicada no Dossiê Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade no Cerrado, juntamente com outros materiais dessa audiência.
Letícia Jury - Há previsão para lançamento de outros livros?
Diana Aguiar - Sobre outros lançamentos, além do já mencionado Dossiê Soberania Alimentar e Sociobiodiversidade que saiu no ano passado (2023), também foram publicados fascículos de todos os 15 casos de conflitos apresentados no Tribunal e um dossiê específico sobre a contaminação das águas do Cerrado por agrotóxicos. Estamos trabalhando no 'Dossiê Terra e Território' com os materiais da Audiência Final. Mas todos os materiais preliminares do Tribunal estão no site-memória e no site da Campanha.