Logo Baru Observatório

“Isso vem de uma junção de amizade e afeto com as famílias”

Idealizadora da Casa Circular do Teatro e uma das criadoras do coletivo Mulheres da Sociobiodiversidade em Terra Ronca, Érica Quaglia Deolindo fala sobre como a cultura e a valorização da tradição podem desenvolver as potencialidades das comunidades tradicionais. Apesar dos desafios, ela ressalta que a linguagem da arte promove transformações.

Um placeholder qualquer

Letícia Jury

28 de maio de 2024

Compartilhe nas redes sociais

Érica Quaglia Deolindo, de 48 anos, natural de São Paulo, é uma daquelas pessoas que acreditam na diversidade, na cultura, nas tradições e, sobretudo, na educação. Conversar com ela é se abrir a inúmeras possibilidades de projetos e ações. Educadora, atriz, diretora teatral, com formação em teatro técnico e artes dramáticas e graduação em Filosofia, seu sonho de vida sempre foi atuar em comunidades vulneráveis.

No ano de 2012, Érica Deolindo foi trabalhar no Maranhão, em quilombos; depois na Bahia, em áreas rurais, e chegou ao nordeste goiano, onde conheceu Terra Ronca por conta de um evento cultural. “Quis interagir e me tornei família. Eles me receberam e a troca de afeto é real”, conta.

Em uma das mensagens que ela encaminhou às mulheres da comunidade, enfatizou: “Vamos nos unir por causas de melhorias e aprendizados. Sim, o que mais é necessário são as capacitações e formações que somam com os conhecimentos que já temos.” Nesta entrevista ao Baru, ela fala sobre a Casa Circular do Teatro, o coletivo Mulheres para a Sociobiodiversidade, além de seus sonhos, desafios e realizações.

Letícia Jury - Como aconteceu a ideia do projeto Casa Circular do Teatro? 

Érica Deolindo - Em 2019, fui morar em Terra Ronca e criei, dentro de uma comunidade na reserva extrativista Recanto das Araras, uma casa que se chama Casa Circular do Teatro, que iniciou ações sociais com as famílias. De forma independente, eu e amigos íamos às casas do povoado, contávamos histórias e fazíamos apresentações embaixo do pé de Jatobá. Um dia, o Wesley, gestor do parque, me visitou, foi até a minha casa e conheceu o trabalho independente que estava sendo feito.

Letícia Jury - Foi ali o embrião para a criação do coletivo Mulheres pela Sociobiodiversidade?

Érica Deolindo - Sim, todo o trabalho desde o início com as crianças era voltado para uma comunicação sociocultural educativa, onde a identidade deles sempre foi a base e o suporte, reconhecendo o que eles são, o que fazem, o que vem dos ancestrais, daquela localização. A ideia foi crescendo de nos unirmos. Até que, junto com Wesley, gestor do parque, convidamos algumas mulheres para uma reunião, para iniciarmos uma conversa entre nós mulheres sobre os produtos que elas tinham habilidade de produzir e como aquilo poderia ser visto por outras pessoas. Inicia-se a ideia do coletivo Mulheres da Sociobiodiversidade em uma primeira reunião muito pequena, com cinco pessoas, e depois em uma reunião maior. Na conversa, no afeto e na amizade, fomos chamando as mulheres para trocar experiências e reconhecimentos de como continuar trabalhando com o capim dourado, com a fibra do buriti, sementes, e a alimentação que o Cerrado nos oferece. Isso foi crescendo e se tornou um coletivo. Já estamos, se não me engano, na décima primeira edição; já faz um ano de coletivo e de feira, das mulheres do São João, guardiãs dos saberes tradicionais.

Letícia Jury - O trabalho socioeducativo e cultural com as crianças deu origem a um coletivo com as mães. 

Érica Deolindo  - Isso vem de uma junção de amizade e afeto com as famílias. Começamos com as crianças e chegamos às mães, às mulheres em geral. Estamos agora conectadas e fazendo este movimento crescer. Não era comum na região. Essas áreas são vulneráveis e essas iniciativas não chegam através do governo, é bem difícil. 

Letícia Jury - Os desafios foram muitos?

Érica Deolindo  - A luta é constante e se dá através do nosso desempenho como pessoas. Temos ajuda da SEMAD, Secretaria de Meio Ambiente, através da gestão do parque, com infraestrutura e conhecimento. Ao meu ver, tudo começa com o afeto, com a autoestima e com o envolvimento humano. Deixo bem claro que é desse amor que a Casa Circular do Teatro surgiu, para envolver as famílias e alcançar cada porta, cada lugar, acessando e encaminhando o que quer oferecer. Foi assim que surgiram os produtos das mulheres, que são todos artesanais, feitos por grande parte delas. Hoje, elas são cerca de 15 mulheres ativas, mas na feira mensal chegam a 30. É através da comunicação e da linguagem que toca. Existe confiança e valorização, mas somente se for realmente a identidade deles. Eu recebi deles o que vem da raiz da história do Cerrado. Não fui eu quem impus; eles trouxeram o que é de valor para eles. Só cresce e se valoriza por causa do envolvimento humano. Isto é primordial.

Letícia Jury - Como é despertar à criação de um coletivo em comunidades com tamanha riqueza cultural? 

Érica Deolindo  - É uma sociedade que olha para a natureza. Os ensinamentos que trabalhei com os quilombos e com as aldeias me fizeram entender cada vez mais a essência através da ancestralidade. Quando cheguei em Terra Ronca e vi aquele povoado tradicional com tanta memória, mas que não estava sendo nutrido por sua própria memória, isso me chamou a atenção. Quero alimentá-los com suas próprias memórias: frutas, sementes, plantas e raízes, valorizando isso. O que eu escutava quando cheguei era que aquilo não tinha valor. Durante a pandemia, gravamos vídeos para o YouTube. E em 2023, criamos o coletivo. Através do que é tradição, garantimos o direito das mulheres de trabalharem com o que gostam, de empreenderem. A linguagem que acessei foi a da arte e da cultura.

Letícia Jury - Hoje você está em Florianópolis? 

Érica Deolindo - Mas, mesmo no Sul, estou diariamente conversando com elas. O incentivo continua e cresce, como algo de desenvolvimento humano, liberdade e autoescolha, com autoconhecimento. Após cinco anos no território, observo que abrir a escuta é um desafio. É necessário adquirir a confiança e nutrir a autoestima. Através das crianças, elas se sentiram confiantes. Muitos desafios. Somos 30 mulheres, com reuniões mensais. Wesley está sempre buscando uma forma de dar visibilidade. E a voz é o cuidado com o Cerrado, as tradições que acabam se perdendo se não forem valorizadas; tudo se perde, é o valor do outro. A meta e minha missão são deixar acessíveis os valores do povoado.

Letícia Jury - O que você tem aprendido com todas estas experiências com comunidades tradicionais?

Érica Deolindo - Eu tenho 48 anos, nasci em São Paulo, capital, mas posso dizer que sou de cada cantinho deste Brasil. Me identifico com diferentes áreas que precisam ser cuidadas e vistas, como os nossos biomas. As pessoas não olham para essas áreas com o olhar de cuidado; é apenas uma viagem, um turismo. Mas olhar para cada árvore, nascente e rio deve ser um olhar de cuidado. Cuidar da natureza e cuidar das pessoas. Precisamos ter essa atenção.

 

© 2024 Baru Observatório - Alguns direitos reservados. Desenvolvido por baraus.dev.