Você conhece os povos e comunidades tradicionais do Cerrado?
Infelizmente, muitas dessas comunidades estão testemunhando a devastação do Cerrado que as rodeiam, se tornando praticamente ilhas de áreas conservadas no bioma. Tal fato evidencia ainda mais a importância da preservação de seus meios de vida, que conservam o bioma por meio do uso sustentável, um serviço ambiental de ganhos inestimáveis. Garantir a permanência desses povos em seus territórios é conservar o bioma, suas riquezas e todos os benefícios que o Cerrado traz para a sociedade.
28 de janeiro de 2024
Compartilhe nas redes sociais
Fonte: Instituto Sociedade, População e Natureza
O historiador Paulo Bertran, um dos maiores estudiosos da história do Goiás e do Planalto Central, foi autor do termo ‘Homo cerratensis’, batizando simbolicamente a descoberta feita do esqueleto humano, Homo sapiens sapiens, mais antigo das Américas, em escavação arqueológica na região de Serranópolis-Goiás, com idade de 13 mil anos antes do presente. Ao longo do tempo, o termo ‘Homo cerratensis’ passou a designar o habitante tradicional do Cerrado, fruto ou não de mistura entre populações indígenas, portuguesas e africanas. Alguns se referem a essas pessoas somente como: Cerratenses. Há ainda a designação genérica Povos do Cerrado, usada com frequência pela Rede Cerrado, que dá destaque ao protagonismo dessas populações tradicionais na defesa do bioma.
Independente do nome a ser usado, esses povos são de uma beleza e diversidade inigualáveis. Seus territórios conservados formam, muitas vezes, corredores de conexão entre áreas protegidas e terras indígenas. São agricultores familiares e comunidades tradicionais, como quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu e povos indígenas, agrupamentos humanos de profunda sabedoria e respeito ao meio ambiente, com expressivo senso comunitário. Além, claro, das populações urbanas que compõem um rico mosaico humano.
O Cerrado abriga em torno de 216 terras indígenas (TIs) e 83 diferentes etnias. Distribuídos principalmente nos estados do Maranhão, Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, possui uma população indígena de aproximadamente 100 mil habitantes. No entanto, a grande maioria das TIs não passou por um processo de regularização fundiária. Tal condição resulta em sérios conflitos, os quais têm sido um dos fatores de ameaça de extinção de diversos grupos indígenas.
Existem atualmente 44 territórios quilombolas no Cerrado. Essas comunidades, remanescentes da época da escravidão, seguem lutando pelo reconhecimento de seus territórios e pela manutenção de sua cultura, tradições e modos de viver. Um bom exemplo são os Kalungas, comunidade quilombola localizada na Chapada dos Veadeiros, no norte de Goiás, reconhecida em 1991 como patrimônio histórico e cultural brasileiro. Os Kalungas ainda hoje preservam seus meios de vida, com plantios de roças, criação de animais e conhecimento dos usos das plantas do Cerrado, seja para fins alimentícios, medicinais e utilitários. Sobretudo preservam um valioso legado cultural, contido em histórias populares e festas tradicionais, muitas delas específicas de cada um dos núcleos do território Kalunga (região da Contenda e Vão do Calunga; Vão de almas; Vão do Moleque e Ribeirão dos Bois).
Os Geraizeiros são outra população tradicional de grande importância para a conservação do bioma. Eles são camponeses de localidades onde o termo Gerais é usado para designar o Cerrado (a grosso modo), reunidos em áreas onde há o bioma no norte e no noroeste de Minas Gerais e no oeste da Bahia. Uma grande ameaça aos geraizeiros foi o avanço das monoculturas de eucalipto desde a década de 70, o que ocasionou expropriações, grilagens e muitos impactos ambientais. Os geraizeiros possuem suas particularidades culturais e um modo de ser tradicional inseridos no bioma de maneira sustentável, que buscam defender com um movimento de resistência e afirmação, a fim de preservar sua identidade e territórios.
As quebradeiras de coco babaçu são mulheres comuns das comunidades que assim se denominam pelo labor da colheita e da quebra do coco. A palmeira tem maior ocorrência na região ecológica do babaçu, que abrange as regiões de Cerrado, cocais, baixada e chapadões no Maranhão; o curso médio e baixo do Rio Parnaíba, no Piauí; e as baixadas e vales úmidos, às margens dos rios Tocantins e Araguaia, no estado do Tocantins. Inicialmente, as quebradeiras se juntavam em suas comunidades para trabalhar, mas acabavam por criar vínculos entre elas, o que dava mais confiança para lidarem com suas dificuldades cotidianas. Na década de 90, surgiu o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), um coletivo que agrupa muitas dessas mulheres para lutarem por melhores condições de vida, conhecerem seus direitos e defenderem a palmeira e o meio ambiente.
Já as comunidades Vazanteiras são aquelas localizadas, sobretudo, nas margens do Rio São Francisco, elas vivem da pesca, do extrativismo e da criação de animais. Sua agricultura se dá de modo particular, acompanhando os ciclos de enchente, cheia, vazante e seca do rio. Os vazanteiros vêm lutando para preservar seus modos de vida e pela garantia do direto à terra e à água, resistindo fortemente ao avanço do agronegócio nas suas regiões.
Outra população tradicional do Cerrado são as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, também presentes em menor quantidade na Caatinga. Seu modo de vida está baseado na utilização de áreas de pastoreio comuns para a criação de bovinos, caprinos e/ou ovinos, e extrativismo de plantas alimentícias e medicinais. Na década de 70, as comunidades cercaram (“fecharam”) coletivamente determinadas áreas, buscando se proteger de grileiros e grandes produtores e, assim, vem a denominação Fecho de Pasto (pasto entendido como a vegetação nativa). Os fechos mantêm uma grande importância para a manutenção do bioma. No oeste da Bahia, as áreas conservadas se concentram justamente onde estão localizados os fechos de pastos das comunidades.
Por fim, cabe mencionar um grupo muito peculiar presente no Cerrado, que são os apanhadores de flores sempre-vivas, espécies nativas de campos rupestres do bioma, que depois de colhidas passam por um processo de secagem e, por vezes, de coloração que as mantém com um aspecto vivo. Em geral, há apanhadores em mais de 50 municípios da região de Diamantina, na porção meridional da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. A coleta das flores é uma tradição que vem se perpetuando ao longo das gerações, sendo uma importante fonte de renda para as comunidade. Esse grupo tem buscado fortalecer sua identidade, de modo a lutar pelo reconhecimento de suas práticas e pelo direito de uso do território.
Como parte desse processo de fortalecimento de identidade, em 2018 os apanhadores de flores sempre-vivas foram a primeira candidatura brasileira no programa de reconhecimento de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam), concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O processo, iniciado em 2018, buscou dar valor aos apanhadores, que se intitulam guardiões de sementes, flores e outras plantas agrícolas tradicionais.
Infelizmente, muitas dessas comunidade estão testemunhando a devastação do Cerrado que as rodeiam, se tornando praticamente ilhas de áreas conservadas no bioma. Tal fato evidencia ainda mais a importância da preservação de seus meios de vida, que conservam o bioma por meio do uso sustentável, um serviço ambiental de ganhos inestimáveis. Garantir a permanência desses povos em seus territórios é conservar o bioma, suas riquezas e todos os benefícios que o Cerrado traz para a sociedade.