Perda de territórios indígenas ameaça segurança alimentar, diz ex-presidente da Assembleia-Geral da ONU
Em entrevista ao G1, Maria Fernanda Espinosa falou sobre as ameaças e importância da conservação dos conhecimentos tradicionais indígenas.
10 de setembro de 2023
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A ex-presidente da Assembleia Geral da ONU, Maria Fernanda Espinosa, disse que a perda de territórios indígenas no mundo ameaça a segurança alimentar. A diplomata também afirmou que as mudanças climáticas ameaçam a sobrevivência desses povos e provocam massivos deslocamentos.
Neste ano, a ONU estabeleceu o Ano Internacional das Línguas Indígenas, porque elas “estão em sério risco de desaparecer”, afirmou ainda Maria Fernanda.
Em entrevista ao G1, Espinosa falou sobre a situação dos povos indígenas no mundo. A ex chanceler do Equador foi a primeira mulher latino-americana a assumir a presidência da Assembleia Geral da ONU, cargo que tem mandato de um ano. No mês passado, ela passou o bastão para o nigeriano Muhammad-Bande.
No Brasil, a questão indígena ganhou os holofotes neste ano, com os ataques do presidente Jair Bolsonaro ao processo de demarcação de terras. O presidente disse que, se depender dele, não haverá mais nenhuma demarcação no país.
A falta de novas demarcações preocupa o Ministério Público Federal. Para o procurador responsável pela questão indígena no MPF, Antonio Carlos Bigonha, Bolsonaro faz um discurso “irresponsável ao dizer que a lei não vai ser cumprida”. De acordo com a Constituição de 1988, a União é obrigada a promover o reconhecimento das terras indígenas.
Quais são as principais ameaças que vivem os povos indígenas?
Os povos indígenas, tanto em países em desenvolvimento, como nos próprios países desenvolvidos, sofrem ainda as consequências da colonização, da deposição de suas terras e territórios, de seus recursos, sofrem de discriminação, assim como do grande desafio relativo ao controle de decisões de seus próprios modos de vida, de suas próprias culturas, de suas próprias línguas.
A perda de suas terras e seus recursos ameaça a segurança alimentar e a dos povos indígenas. Lamentavelmente, a pressão pela exploração dos recursos naturais para alimentar o consumo mundial gera fortes pressões e conflitos nos territórios tradicionais dos povos indígenas.
Por que estes povos são importantes para que se alcancem os ODS?
O conhecimento indígena gera grandes aportes a nova ciência e tecnologia. O conhecimento que eles têm sobre os recursos genéticos, sobre a biodiversidade, sobre os regimes climáticos, é realmente uma ferramenta fundamental, não só para eles, como para sociedades inteiras, que podem com isso implementar e cumprir os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Como os conhecimentos e práticas dos indígenas contribuem para a preservação do meio ambiente?
Os sistemas de conhecimento indígena são tremendamente ricos e complexos, e podem contribuir de maneira direta à manutenção da diversidade biológica e cultural. Podem contribuir para erradicação da pobreza, à solução de conflitos, à segurança alimentar, à saúde dos ecossistemas.
Eu creio que os conhecimentos dos povos indígenas contribuem a todos os esforços internacionais que se realizam nos diferentes âmbitos do desenvolvimento, a conservação da natureza, os temas de segurança alimentar, enfim, eles são atores centrais, fundamentais, na agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Porém, lamentavelmente, temos que reconhecer, esses conhecimentos tradicionais continuam sendo ameaçados pelo uso e acesso indevido, pela marginalização dos povos indígenas, pelo acelerado desaparecimento das línguas indígenas, que são o veículo principal desses conhecimentos.
Ao desaparecer uma língua, desaparece uma cultura, e desaparece também os sistemas de conhecimento. É por isso que no ano de 2019, precisamente este ano, a ONU estabeleceu o Ano internacional das Línguas Indígenas, com o objetivo de revitalizá-las, de protegê-las, de conservá-las, de mantê-las, de cuidar que não desapareçam. Porque são tremendamente valiosas, e como dizíamos, uma língua indígena contém complexos e sofisticados sistemas de conhecimento que são importantes para toda a humanidade.
Como os povos indígenas podem contribuir para as ações de mitigação e combater o câmbio climático?
Há que se ressaltar que a sobrevivência dos povos indígenas, sua economia, dependem principalmente dos recursos naturais e dos ecossistemas que os rodeiam.
Os povos indígenas também compartilham uma relação cultural estreita e complexa com seu entorno e seus ecossistemas. Aos que lhes concede um valor que vai muito mais além de benefícios econômicos diretos. A relação dos povos indígenas com seu entorno natural é uma relação também cultural, também espiritual, e também é a garantia dos seus meios de vida.
Há que se ressaltar também que os habitats, os meios de vida, as formas de relações, as tecnologias e os conhecimentos variam muitíssimo de região a região, país a país, enfim, há uma grande amplitude de diferenças e diversidade no interior dos próprios povos indígenas.
Há um exemplo que sempre se cita, que é o exemplo do que se chama agricultura climaticamente inteligente, porque incorpora uma combinação de técnicas tradicionais e modernas. Essa é uma das práticas mais citadas e promovidas para mitigar a mudança climática e se adaptar aos seus efeitos.
Igualmente, os bancos de dados genéticos que se estabeleceram por iniciativas públicas, de organizações indígenas, se beneficiam muito dos conhecimentos dos povos indígenas e frequentemente dependem deles. A nanotecnologia, a biotecnologia, dependem não somente da diversidade genética, mas também dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Além disso, creio que é importante destacar o papel muito particular que tem as mulheres e meninas indígenas, porque tem um papel central na manutenção dos meios de vida tradicionais e não tradicionais.
Um papel no trabalho não remunerado de cuidado das pessoas, na segurança alimentar, na transmissão da cultura, na coesão social dos povos indígenas. Por isso também, faço meu tributo especial às mulheres e meninas indígenas.