Lixo e biogás: como problema ambiental se torna alternativa em geração de energia sustentável
Usina instalada há quase 10 anos recebe resíduos de 15 cidades do interior de São Paulo, produz energia suficiente para município de 60 mil habitantes e inverte curva de emissão de gases do efeito estufa. Unidade é uma das quase 100 em operação em todo o país.
26 de outubro de 2023
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Crescente em uma sociedade que consome e polui cada vez mais, o lixo é uma das faces simbólicas do prejuízo que os seres humanos causam a si e ao Planeta Terra e tem, como um dos principais "protagonistas", o metano (CH4), um dos grandes gases do efeito estufa, que dia após dia tem se mostrado mais presente nas transformações climáticas.
E se os aterros sanitários, com barreiras físicas e protocolos específicos, ainda representam a destinação mais adequada para o descarte do lixo comum, nesse mesmo ambiente se encontra uma solução que ameniza as emissões e ao mesmo tempo proporciona uma alternativa limpa e sustentável para a produção de energia, com o biogás.
Para mostrar esse potencial, o g1 ouviu especialistas e apurou como funciona a produção de uma usina instalada há quase dez anos em Guatapará, cidade a 300 quilômetros de São Paulo que recebe diariamente 1,5 mil toneladas de lixo de 15 cidades da região de Ribeirão Preto (SP) e gera energia elétrica suficiente para manter uma cidade de 60 mil habitantes em atividade.
Nesta reportagem, você vai ler sobre os seguintes tópicos:
Estimativas do Banco Mundial dão conta de que o mundo produz mais de 2 bilhões de toneladas de lixo por ano, o que deve crescer para 3,4 bilhões até 2050.
Um dos países que impulsionam esses números, o Brasil produziu, em 2022, 82 milhões de toneladas de resíduos, dos quais apenas 4% foram reciclados, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe).
Entre as maiores preocupações do ponto de vista ambiental, além do chorume, líquido tóxico resultante da decomposição do lixo, os gases expelidos dele são altamente poluentes, sobretudo pela presença do metano em sua composição.
Por isso, desde 2022 está em vigor no país o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que tem entre suas metas acabar com os chamados "lixões", ampliar a reciclagem e encontrar alternativas para a transformação do lixo em energia.
A destinação correta do biogás, composto gerado pelo lixo e que pode ajudar na geração de energia elétrica, além de combustível e biofertilizantes, por exemplo, é uma das soluções mais promissoras para o cumprimento desses objetivos nacionais, bem como das políticas internacionais para mitigar os impactos ambientais dos resíduos sólidos.
Nesse sentido, o Brasil tem capacidade instalada para produzir 2,46 bilhões de metros cúbicos por ano (Nm3/ano) a partir do lixo ou esgoto em 105 unidades, quase a metade disso - 1,38 bilhão - no estado de São Paulo, segundo o BiogasMap.
Somente em 2022, o volume total foi de 2,14 bilhões de metros cúbicos, oito vezes mais do que era produzido dez anos antes (veja no gráfico abaixo).
O volume corresponde a 71% de toda a produção - 3,46 bilhões - se consideradas outras modalidades decorrentes de atividades agropecuárias e industriais. Segundo Marques, do CIBiogas, essa predominância tem relação com um maior ganho de escala, em termos de matéria-prima, na comparação com outras formas de produção.
Devido a uma facilidade logística e a recentes regulamentações de órgãos federais, a energia elétrica é a principal destinação do biogás produzido pelos aterros, com 73% da matéria-prima voltada a essa atividade - o que corresponde a 1,81 bilhão de metros cúbicos.
"Hoje um produtor, em qualquer lugar do Brasil que tiver que produzir energia elétrica consegue injetar na rede. Então ele tem facilidade para escoar essa energia."
Em funcionamento desde 2007, o aterro sanitário de Guatapará foi o primeiro a implantar a geração de biogás no interior de São Paulo, em 2014. O espaço tem 800 mil metros quadrados e recebe resíduos sólidos de 15 cidades. São elas:
Além disso, o espaço acolhe o lixo destinado por 1,6 mil estabelecimentos, como escritórios, refeitórios e indústrias. Os resíduos recebidos são classificados como não perigosos, o que não inclui lixo hospitalar e itens que contenham metais pesados e substâncias reativas, como o mercúrio.
O aterro recebe, em média, 1,5 mil toneladas de lixo por dia, uma quantidade que vem aumentando nos últimos anos. No atual padrão de funcionamento, a área é suficiente para acomodar resíduos até 2041.
Em 2012, como parte dos compromissos assumidos pelos países no Protocolo de Kyoto, em vigor desde 2005, e da proibição de se liberar gases diretamente na atmosfera, a concessionária responsável colocou em prática a queima controlada do metano, por meio de dutos individualizados que funcionam como pequenas chaminés saindo do lixo.
Já nesse período, o aterro passou a compensar, por ano, a emissão de 90 mil toneladas de carbono equivalente (Co2e), medida utilizada internacionalmente para equalizar o peso ambiental das atividades.
"O gás que está contido no meu biogás é o metano e ele tem uma relevância muito grande para o efeito estufa", explica Januzzi.
A partir de 2014, um novo processo, que demandou um investimento inicial de R$ 15 milhões, entrou em operação no aterro de Guatapará com a destinação do gás recolhido pelos dutos para a produção de energia elétrica por meio de uma digestão anaeróbia, com a decomposição da matéria orgânica na ausência de oxigênio. Uma iniciativa na época considerada inédita no interior de São Paulo.
Estima-se que mais de 50% desse resíduo seja composto por metano, altamente poluente, mas com forte potencial para a atividade visada.
Para que isso fosse possível, a empresa adequou, na maior parte dos mesmos dutos que recolhem o metano do lixo, uma outra rede que o direciona para um pré-tratamento, para um resfriamento e para os motogeradores, que levam à produção de energia elétrica, incorporada posteriormente à rede da CPFL.
Atualmente, 75% dos gases expelidos pelo lixo no aterro de Guatapará são direcionados para essa prática, enquanto os 25% restantes permanecem com a queima controlada. Com isso, a compensação nas emissões subiu para 130 mil toneladas de carbono equivalente por ano.
"A gente aproveita os drenos verticais, que são aqueles que conduzem o biogás, só que a partir do fim de cada um dos tubos eu tenho que fazer uma nova conexão e aí sim é uma drenagem toda específica para essa geração de energia."
Na prática, são 3 mil metros cúbicos de biogás gerando 5,7 megawatts-hora, o que é capaz de atender uma população de 60 mil pessoas. "Uma casa com quatro habitantes costuma consumir 254 quilowatts-hora. É um volume bastante considerável da geração da usina."
Mas, segundo a Estre, o aterro tem potencial de expandir sua produção de biogás para em torno de 5 mil metros cúbicos ao longo das próximas duas décadas, considerando não só a disponibilidade de lixo como o tempo de decomposição.
No radar de empresas como a Estre também está o biometano, um subproduto do biogás que se torna uma fonte renovável de combustível veicular.
O biogás liberado pelo lixo é composto por mais de 50% de metano, mas também tem outros gases como o sulfídrico (H2S) e CO2. Ao ser transformado em biometano, ele passa por um processo de refino que eleva para 94% a concentração de metano, explica Felipe Marques, do CIBiogas.
O uso do biometano associado ao tratamento do biogás nos aterros potencializa o processo de descarbonização, segundo ele.
"Se eu pego um aterro que já está emitindo metano e pegar esse biogás e usar para abastecer um veículo que ia consumir diesel, faço dois serviços ambientais muito importantes, que é deixar de emitir aquele metano na produção e depois eu desloco o diesel, que também é bastante nocivo para a poluição atmosférica. Tiro o diesel e coloco o metano que é um combustível de baixa emissão. Eu gero uma pegada negativa de carbono."
Desde que a queima controlada do metano e a destinação para geração de energia elétrica passou a ser adotada no aterro sanitário, Guatapará, que tem mil 7,3 mil habitantes, lista entre os que menos emitem gases do efeito estufa no estado de São Paulo e, mais do que isso, inverteu a curva de emissões, com um saldo maior de compensação.
Dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), criado pelo Observatório do Clima (OC), apontam que o município removeu, somente em 2019, 197 mil toneladas de gases causadores do efeito estufa da atmosfera, o equivalente ao que São Simão (SP), município de cerca de 14 mil habitantes próximo a Ribeirão Preto, emitiu no mesmo período.
O grande responsável por isso é o setor de resíduos, que removeu 279,2 mil toneladas e compensa a emissão das outras áreas como agropecuária e mudança de uso de terras e florestas
Com isso, proporcionalmente Guatapará é a cidade do estado de São Paulo que mais compensa dióxido da atmosfera no estado por habitante: são 26 toneladas de carbono equivalente (tco2e).
Em termos absolutos, é a que tem o terceiro melhor resultado no estado de São Paulo, só perdendo para Caieiras (SP) e Itaquaquecetuba (SP).
Ao menos desde 2015, os números de produção de biogás e de distribuição na rede de energia elétrica têm aumentado no país, muito em função de regulamentações como a definição de biometano como biocombustível, pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), e as regras para distribuição de energia na rede, por parte da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Ainda assim, na avaliação do representante do CIBiogas, o Brasil não está nem perto do quanto pode produzir. Ao considerar não só os resíduos que chegam aos aterros, como também os resíduos agropecuários e industriais, a produção anual de biogás poderia chegar a 84 bilhões de metros cúbicos.
"Em três anos a gente consegue aumentar três vezes, praticamente dobrar a cada ano, porque tem muitos modelos de negócio estabelecidos, tecnologia definida, técnica definida. É só uma decisão simples colocar um projeto de biogás para essas situações."
Além de ser sustentável e contribuir para reduzir o efeito estufa, o biogás pode ser uma energia associada a outras fontes intermitentes, como a solar e a eólica.
O término da vigência das regulamentações voltadas para o setor e a desinformação com relação ao tema, no entanto, ainda são questões a serem superadas.
"A gente ainda tem assimetria de informação, então tem muita gente com riqueza em casa e não sabe disso. A gente tem que trabalhar bem forte para a disseminação da possibilidade de produzir biogás e suas aplicações."