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Animais silvestres estão desprotegidos nas estradas em Goiás

Iniciativas de prevenção estão restritas a ações de voluntários, enquanto medidas oriundas do poder público têm muita dificuldade para sair do papel

24 de agosto de 2023

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Goiás não possui medidas oficiais efetivas para a prevenção de atropelamentos de animais silvestres em rodovias que cortam o estado. Enquanto isso, voluntários, universitários e ambientalistas precisam se desdobrar em ações que envolvem tanto o resgate dos feridos, quanto a conscientização dos motoristas, e a cobrança por providências pelo Poder Público. Para especialistas, dispositivos simples reduziriam o número de acidentes.

A necessidade de mais mecanismos de prevenção a esses acidentes pode ser sentida no último dia 16 de agosto, quando a guia turística Jéssica Mesquita localizou um lobo-guará morto às margens da GO-118, que liga Alto Paraíso a São João D'Aliança. O canídeo é um animal ameaçado de extinção, além de ser considerado um dos símbolos do Cerrado. “É uma área que tem bastante desmatamento, a perda de hábitat provoca bastante atropelamento”, pontua a guia. Só em julho, ao menos quatro foram encontrados mortos na região.

Não é difícil encontrar animais mortos às margens das rodovias. Por outro lado, não é fácil localizar dados oficiais por parte dos órgãos ambientais e das forças de segurança rodoviárias, o que prejudica a concretização de políticas públicas para coibir o problema ambiental. Hoje, os levantamentos públicos são feitos basicamente por universidades e concessionárias administradoras de algumas destas vias.

Nas BRs 153, 414 e 080, administradas pela Ecovias do Araguaia, e que cortam de Anápolis ao Tocantins, a concessionária registrou 1.704 atropelamentos de animais silvestres em cinco meses, de setembro de 2022 a janeiro deste ano. Ou seja, em apenas três rodovias do estado, há uma média de 11 acidentes por dia, cujos afetados são, principalmente, os mamíferos.

Ao mesmo tempo, duas leis estaduais, voltadas à implementação de medidas para a prevenção de atropelamentos e à obrigatoriedade do socorro, seguem sem muitos avanços. Na Chapada dos Veadeiros, Nordeste goiano, onde há unidades de conservação, uma licitação da Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra) para contratação de empresa que faria a implementação de 15 passagens de fauna superiores e inferiores nas GOs 118 e 239 está emperrada.

Após ser suspensa e anulada pelo Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO), por irregularidades no edital, não há previsão para quando a licitação será retomada. As passagens deveriam ter sido entregues no início do ano passado após decisão judicial de fevereiro de 2021 em atendimento à ação civil pública movida pela Associação dos Amigos da Floresta (AAF).

Mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB), o biólogo Leonardo Fraga aponta que a legislação goiana inovou “ao prever a criação de banco de dados para o registro dos atropelamentos de animais silvestres e a identificação das áreas com maior incidência de acidentes.” Porém, pontua que a efetiva aplicação pelo poder público enfrenta muitos obstáculos, “principalmente pela ausência, até hoje, do banco de dados.”

Com a falta de uma plataforma unificada para registro dos atropelamentos, mesmo diante de uma grande quantidade de dados registrados, especialmente, por pesquisadores, o biólogo destaca que as iniciativas se tornam pontuais “ocorrendo, na maioria dos casos, a nível das universidades e das organizações não governamentais (ONGs)”. E constata: “O grande número de atropelamentos da fauna silvestre resulta da inexistência de planejamentos específicos nos novos projetos rodoviários, e de ações de mitigação nas rodovias consolidadas.”

A advogada Flávia Cantal, vice-presidente da AAF, explica que o atropelamento é uma das principais causas de extinção de espécies da fauna. “Temos um número muito grande de atropelamento de fauna, tem lobo-guará, raposinha do campo, cachorro do mato, anta, tamanduá-bandeira”, pontua. Na Chapada dos Veadeiros, aponta ela, as aves são as mais afetadas e representam cerca de 40% dos acidentes.

“Dados oficiais apontam que são sete mil acidentes por ano (na Chapada dos Veadeiros). É um dado subestimado, provavelmente é muito mais que 20 mil”, diz. Flávia aponta que o alto número de atropelamentos poderia ser reduzido com medidas mitigatórias nas rodovias. “São dois grandes tipos de medidas, as passagens de fauna e os redutores de velocidade. Tem que associar os dois tipos. Quando faz a mitigação bem feita, consegue reduzir até 90% dos atropelamentos”.

A implementação dos redutores de velocidade, a exemplo, teria diminuído em ao menos 50% o número de atropelamentos nas GOs 118 e 239, que circundam a região.

A advogada explica que não há estudos oficiais, mas “a percepção de pessoas que têm muita prática e experiência com animais atropelados” é de que houve redução significativa. As lombadas foram implementadas ainda em 2021.

Para a engenheira ambiental e presidente em exercício do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Goiás (Crea-GO), Wanessa Rocha, as medidas de mitigação a atropelamentos ainda são pouco adotadas. “São bastante eficazes, (mas) deveriam ser ampliadas. Passagens de fauna, cercas-guia que direcionam para esses locais de segurança. Já a parte de sinalização é mais barata, mais fácil de aplicar quando se identifica onde há esses pontos de passagens de animais”, pontua.

Conforme ela, é preciso dar início à quantificação de dados para fazer a elaboração e a implementação dos dispositivos. Wanessa pontua ainda que “a inclusão dos cuidados nas rodovias deveria constar na preparação dos novos motoristas, por meio da conscientização, da educação ambiental”. “(O que ajudaria) a mitigar esses impactos negativos como a morte por atropelamentos”, finaliza.

A doutora em Ciências Ambientais e professora da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Hélida da Cunha, aponta que o atropelamento de animais silvestres está interligado ao desmatamento. Isso porque, explica, eles necessitam de se deslocar por maiores percursos entre as áreas verdes fragmentadas pelo estado e, consequentemente, precisam passar por rodovias. O problema seria, ainda maior, durante o período noturno e chuvoso.

“Tem animais que caminham por longos períodos, faz parte do comportamento deles. A própria necessidade de procurar produtos para sobrevivência. Como as áreas são muito pequenas e degradadas, tem pouco alimento, e às vezes não tem nem água”, pontua. Ainda conforme ela, considerando o aumento do desmatamento e a diminuição da área natural, “arrisco dizer que continua crescente (o número de atropelamentos)”.

De acordo com a docente, a prevenção dos acidentes nas rodovias também necessita de estar acompanhada do aumento nas áreas de reserva legal, que são locais protegidos dentro de propriedades rurais, e das unidades de conservação. “E também o estado de conservação dessas áreas (reservas e unidades). Se a área estiver muito degradada, o animal não vai ter condições de sobreviver, então vai precisar sair, se locomover”, pontua.

Além do risco aos animais silvestres, os acidentes nas rodovias podem causar a morte aos motoristas e passageiros. Dessa forma, os especialistas apontam que as medidas mitigatórias defendidas pelos especialistas garantiriam toda a segurança viária. “(Os acidentes causam) uma perda da biodiversidade, perda de vidas humanas e prejuízo econômico associado a esses acidentes, como a manutenção da rodovia, o tratamento médico”, pontua a advogada Flávia Cantal. 

Relacionada à atuação dos motoristas após acidentes envolvendo animais, a Lei estadual 21.958, sancionada em maio de 2023, e que alterou o Código de Bem-Estar Animal, instituído pela Lei 21.104/2021, impôs a obrigatoriedade do socorro imediato aos animais. Tipificou ainda a falta de assistência como crime de maus-tratos, com pena de multa. 

O Código prevê que a fiscalização seja feita pelos “órgãos estaduais competentes”. A Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Semad), por outro lado, não obtém dados relacionados a atropelamentos de animais silvestres no estado. Também não respondeu em relação à fiscalização da lei. 

Enquanto há uma lacuna por parte do Poder Público, a sociedade civil se organiza em partes do estado. Em 2018, o biólogo Leonardo Fraga fundou o Eu Desacelero na Chapada. A campanha tem atuado em diferentes frentes, tanto na educação ambiental, quanto no resgate e transporte de animais silvestres feridos para tratamento em universidades ou nos Centros de Tratamento de Animais Silvestres (Cetas), ligado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBama), do Distrito Federal e de Goiás.

O biólogo Piquerobi de Souza, que atua na campanha, em Alto Paraíso, aponta que há dificuldades nos entes federativos, seja União, estado e município, em tomarem a responsabilidade sobre os cuidados com a fauna silvestre. Na região, o resgate, os primeiros cuidados, e o transporte dos animais atropelados é, basicamente, feito por grupo de voluntários, formado principalmente por biólogos e veterinários.

“Resgate de fauna não é simples”, pontua ele, acrescentando que há casos em que o animal acaba falecendo durante o trajeto ao Cetas em Goiânia e Brasília. Uma das demandas é, justamente, a implementação de centros na própria região da Chapada, e o “alinhamento das esferas de poder” para que se responsabilizem pelo problema. “Os entes governamentais que deveriam agir estão se isentando”, finaliza.

Fraga acrescenta outras ações que envolvem “blitz educativas periódicas para turistas e moradores e campanhas de divulgação na internet”. A campanha, apoiada pela Associação dos Amigos da Floresta (AAF), também atua com educação ambiental, palestras e programas culturais, conforme a vice-presidente Flávia Cantal. 

“Promovendo pesquisas, apoiamos pesquisadores. Fazemos o monitoramento que a Goinfra deveria estar fazendo. Também fazemos a identificação e registro dos principais atropelamentos por meio de voluntários”. A associação também atua instaurando inquéritos junto ao Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) e ajuizando ações civis públicas.

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